terça-feira, 22 de março de 2011

HISTÓRIAS DE TRANCOSO

DJANIRA SILVA iniciou-se nas letras em Pesqueira, nos jornais
A Voz de Pesqueira e a Folha de Pesqueira.
No Recife colaborou para o Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Diário da Noite e Folha da Manhã. Tem inúmeros livros publicados, entre eles A Magia da Serra; Em Ponto Morto; Maldição do Serviço Doméstico; Olho do Girassol; Memória do Vento; Pecados de Areia, Do Quintal Para o Mundo, que lhe valeram mais de dez prêmios literários.
Pertence à Academia de Artes e Letras de Pernambuco,
Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro,
Academia Recifense de Letras e U.B.E. - União Brasileira de Escritores. É sócia efetiva da AIP – Associação de Imprensa de Pernambuco. Luiz Gonzaga Lopes

HISTÓRIAS DE TRANCOSO

Djanira Silva

Cresci ouvindo falar de Trancoso e de seus ditos populares, ditos extraídos de contos rudimentares e que subsistiram na memória do povo, principalmente no Nordeste onde a expressão histórias de Trancoso equivale a histórias da carochinha.

Minha mãe costumava dizer: não conte o seu segredo a ninguém, você que é o dono não guardou não pode esperar que os outros guardem. Ou então, nunca peça perdão para quem merece castigo.

Há algum tempo, pesquisando sobre os fundamentos do conto na língua portuguesa, encontrei entre os precursores, o nome de Gonçalo Fernandes Trancoso, de quem infelizmente, pouco se conhece. Até as datas de nascimento e morte são presumidas.

Sabe-se que foi contemporâneo de Cervantes, Montaigne, Shakespeare, Erasmo e Camões, não podendo, no entanto equiparar-se a eles uma vez que foi mais testemunha do que participante. Era conhecido como um zeloso moralista, e praticante de uma supersticiosa religiosidade. Tendo por base a cultura popular, inseriu o conto português na grande corrente européia. Segundo Teófilo Braga foi no século XVI que o conto português recebeu a forma literária dada por Gonçalo Fernandes Trancoso.

Escreveu cerca de trinta e oito histórias e teve seus trabalhos reeditados, mesmo depois da sua morte, até o século XVIII. Possui um estilo agradável marcado pela tradição oral, embora Agostinho de Campos o defina como homem de poucas letras, pouco versado em cultura clássica e muito versado em temas de justiça e de tribunal. Autor de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo teve a primeira parte publicada, possivelmente, em 1575 e a segunda, em 1596, depois de sua morte.

O primeiro dos seus contos é precedido por uma epígrafe onde se lê: Do que acontece a quem quebranta os mandamentos de seu pai e o proveito que vem de dar esmola e o dano que sucede aos ingratos.

Neste conto narra a história de um homem que, sabendo-se no fim da vida, chama seu único filho a quem diz: quero te dar alguns conselhos e espero que para teu próprio bem os sigas à risca:

Primeiro, não deves deixar a tua casa aqui na quinta, lugar seguro onde viveste até hoje. Não te mudes para a cidade. Lá há muita gente e muita maldade.

Segundo: nunca, nem mesmo se o Duque te pedir o presenteeis com o que quer que seja, porque se o fizeres ele há de pensar que dispões de muito e te considerará, daí por diante, foreiro tributário, isto é, aumentará os teus impostos.

Terceiro- Do mesmo jeito que não deves dar, também não peças nada a ninguém, e não intercedas por malfeitores que por seus crimes devam ser castigados.
E o último e quarto conselho, não contes os teus segredos a ninguém, pois se tu, o dono, não o guardaste, como irás querer que os outros o guardem? Cuida-te, principalmente, contra tua mulher porque quando tiver uma raiva será a primeira a contá-los a todo mundo. O rapaz escutou os conselhos e prometeu cumpri-los. Morto o pai, o jovem, por simples curiosidade, decidiu-se a fazer o contrário para ver o que aconteceria.

Mudou-se para a cidade e logo começou a dar esmolas e a ajudar os outros mesmo sem lhe pedirem. Deu de presente ao Duque dois valiosos potros e em troca recebeu um alvará que lhe garantia o direito de, em qualquer tempo, solicitar um favor por maior que fosse.

Tornou-se querido porque além de atender aos que lhe pediam, ainda oferecia ajuda espontaneamente. Em poucos anos não havia na cidade e nos arredores uma só pessoa a quem ainda não tivesse dado presentes ou feito algum favor. Tido por muito rico tornou-se o alvo dos mais variados pedidos. Já não tinha sossego.

Certo dia a polícia capturou um assassino e ladrão que andava pelos arredores da cidade matando e saqueando. Arrastado pelas ruas e praças foi levado ao pelourinho onde lhe seriam decepadas as mãos e logo em seguida, a cabeça.
Ao saber da notícia o rapaz foi à presença do Duque pedir perdão e liberdade para o condenado, uma vez que o alvará de que era possuidor lhe reconhecia este direito. O Duque relutou. Porém, diante do documento por ele mesmo escrito e assinado, teve que honrar a palavra dada, mandando, mesmo a contragosto, libertar o malfeitor. Rasgou o alvará e virou as costas ao jovem que, a partir daquele momento, passou a considerar seu pior inimigo.
O Duque possuía um falcão, ave rara, valiosa e agressiva que o acompanhava nas caçadas.
Um dia o pássaro voou do seu ombro para dentro da mata de onde não mais voltou. Feita uma devassa nos arredores não encontraram nem sinal do falcão fugitivo. O Duque mandou apregoar que perdoaria qualquer delito a quem o encontrasse e, a quem o encontrasse e o retivesse, daria a pena de morte. Por um acaso a ave fora parar na quinta do jovem, que dela se apossou, escondendo-a bem escondida.

Na hora do jantar disse a sua mulher: vou te contar um segredo, o pássaro que o Duque procura veio cair no nosso jardim. É uma ave de rapina que mata as outras, razão pela qual a abati, depenei, assei e trouxe para o nosso jantar. A mulher recusou-se a comer e passou a reclamar e insultar o marido. Tanto falou, que ele, irritado, derrubou-a com uma bofetada. Ao se levantar ela abriu a porta, correu para a rua aos brados de que o marido era um criminoso, havia matado a ave que pertencia ao Duque. Logo toda a cidade ficou sabendo e o homem foi preso e levado a julgamento. No tribunal não faltaram testemunhas que jurassem tê-lo visto matar, depenar, assar e comer a ave, a toda essa gente ele havia ajudado.

Foi condenado à morte e teve todos os bens confiscados. Surgiu, porém, um problema, não havia carrasco para executar a sentença, uma vez, que a maioria das pessoas, se recusava a fazer aquele tipo de trabalho. Foi oferecida uma valiosa recompensa. Logo se apresentou o malfeitor, o mesmo salvo do patíbulo pelo jovem e que disse ser um prazer executá-lo porque só assim se veria livre de uma presença que o lembrava sempre do favor recebido.

Já estava tudo pronto, para a execução, quando o capelão do ducado, a quem o jovem havia narrado a verdadeira história do aparecimento do falcão na sua quinta, contou tudo ao Duque mostrando-lhe que o jovem era vítima de uma injustiça.

Sabedor de que a ave estava viva e bem guardada e, diante do pedido do sacerdote, liberou o condenado porque queria justiça e não vingança.

Mandou que ele voltasse a morar na quinta e, por castigo, vivesse com a mulher até o fim dos seus dias.